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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Escola usa aulas de respeito e honestidade para combater violência - BBC Brasil

Aula de inteligência emocional na escola em Pirituba
"Professora, o Victor disse que vai matar o Pedro e a Ana quando ele crescer", denuncia Marina* à professora da sala da segunda série de uma escola localizada no meio de uma comunidade em Pirituba, zona oeste de São Paulo. A "ameaça de morte" pode até assustar de bate-pronto, mas é uma provocação comum de ser ouvida por ali. "Eu tava zoando", defende-se o garoto de 8 anos.
Até três anos atrás, os gritos de "Vou te matar" eram, em geral, seguidos por brigas violentas, em que alunos saíam dando chutes, socos e pontapés uns nos outros. Às vezes, sobrava também para os professores – alguns deles relatam terem levado "unhada" dos estudantes, outros foram agredidos com chutes em momentos de irritação das crianças.
Mas desde que um grupo de psicólogas começou a trabalhar as emoções dos alunos, inserindo na grade curricular a matéria de "inteligência emocional" – que incluem aulas de respeito e até honestidade -, a realidade da rotina na escola mudou bastante, conforme relatam os próprios professores.
O tema da violência contra professores foi destacado por internautas em consultas nas redes sociais promovidas pelo #salasocial, o projeto da BBC Brasil que usa as redes para obter conteúdo original e promover uma maior interação com o público.
Leitores disseram que a educação deveria merecer mais atenção por parte dos candidatos a cargos públicos e educadores compartilharam denúncias de agressões que sofreram tanto em nossas páginas de Facebook, como Google+ e Twitter.

Reflexo de conflitos

Localizada em uma comunidade com altos índices de violência, a escola da zona oeste sofria o reflexo dos conflitos do lado de fora que iam parar dentro das salas de aula, com alunos agressivos e "sem limites", conforme definiram os próprios professores à BBC Brasil.
"É uma realidade fora do que você possa imaginar vivendo na classe média. O comportamento das crianças me assustou bastante, a agitação que eles tinham, a falta de concentração", relatou uma das professoras, que já teve turmas do ginásio e do primário na escola de Pirituba.
"A gente via muito desrespeito, falta de tolerância, o aluno não consegue enxergar os erros dele, mas aí aponta no outro tudo o que tem de ruim e isso gera muitas brigas, agressões verbais, físicas, tudo isso aqui era muito constante", constatou.
Para combater essa "agressividade" dos alunos, as psicólogas que fazem parte do grupo Inteligência Emocional na Escola implementaram um projeto no colégio dando outro caminho – que não a violência – para os alunos extravasarem suas emoções.
"Esses alunos têm problemas assustadores, alguns sofrem abuso sexual do pai, outros apanham, eles vivem a violência dentro e fora de casa e eles precisam falar isso, é um jeito de extravasar. Mas isso normalmente acaba sendo pela violência. Se você dá outro caminho para eles extravasarem isso, eles entendem e param com a violência", explicou Andreia Carelli, uma das psicólogas que fazem parte do projeto implementado na escola municipal de Pirituba.
O trabalho dela e das outras duas psicólogas que atualmente estão no projeto se dá em três tipos de ações: o ensino da inteligência emocional dentro da sala de aula, por meio de uma apostila que trata temas como respeito, honestidade, cidadania, diferenças, etc, conforme a faixa etária; o uso de dinâmicas (brincadeiras) que têm como objetivo trabalhar as emoções dos alunos e o autocontrole; e o atendimento individual para os casos mais graves, de alunos muito agressivos ou que passam por problemas pessoais mais complicados (abuso sexual, violência doméstica, drogas, etc).

Aulas

Pelos abraços e o calor demonstrado pelos alunos já no caminho para a sala, a reportagem constatou que o projeto parece ter boa receptividade. "Qual vai ser a atividade de hoje, tia?", "O que a gente vai fazer hoje, prô?" – a agitação era inegável, mas os alunos da 4ª série pareciam empolgados para a 'lição emocional' do dia que a professora-psicóloga iria passar.
Andreia começa a aula questionando os alunos: "O que tem que estar sempre presente quando a gente está em grupo?". Eles citam educação, amizade, respeito. "Respeito. E quando a gente perde o respeito é fácil de recuperar?" – um grandioso "não" ecoa pela sala. E a professora segue a explicação da brincadeira. "Hoje vocês vão ser cuidadores do respeito. Nós vamos deixar o respeito aqui na lousa e nós temos que cuidar para ele não ir embora."
A tarefa do dia era ouvir quatro histórias que a professora contaria e identificar, por meio de "carinhas" desenhadas em um papel (feliz, triste, assustado e com raiva) qual emoção cada uma delas despertava. Tudo isso sem perder os cuidados pelo "respeito" guardado na lousa.
Não demorou muito para os alunos se agitarem e começarem a falar ao mesmo tempo. A professora relembra: "Olha o respeito indo embora!", e a aluna da primeira carteira endossa o pedido apontando para o colega: "É, Kauã, respeita, cala a.." e ela mesma percebe sua 'quase' falta de respeito, colocando a mão na boca antes de completar a frase.
No meio da brincadeira e de algumas provocações direcionadas, outro incidente chamou a atenção da turma. Victor*, um garoto sentado no fundo da sala, levanta de repente e pega a cadeira na mão. Com um olhar transbordando de raiva, ele anda em direção ao colega em tom de ameaça. "Ele tá doido, ele quer matar ele" (sic), avisa um dos meninos à professora, que vai até Victor, abraça o garoto e, em tom sereno, faz as perguntas que eles já se acostumaram a ouvir nos últimos anos.
"Por que você queria jogar a cadeira nele? Você acha que ele ia ficar feliz se você fizesse isso? Você ia ficar feliz? Resolveria sua raiva? Lembra que quando a gente perde o respeito, a gente não ganha o respeito dos outros" – aos poucos, o Victor vai se acalmando e volta a sentar no seu lugar.
Ao fim da aula, quando a professora pergunta se a classe "cuidou bem do respeito", o próprio Victor admite: "Vixe, o respeito quase foi embora".
Andreia Carelli faz parte do projeto há um ano e meio e explica que o grande mérito dele é mudar a visão de mundo dos alunos. "Quando eles chegam aqui, a única referência deles de mundo é a violência, mas a gente conseguiu dar pra eles outra referência, como conversar. Se você não gosta de apanhar, por que você vai bater? E com o tempo eles vão mudando essas atitudes."

Professores

As aulas de inteligência emocional são ministradas semanalmente de 1ª à 5ª série em quatro escolas do país, duas em São Paulo (uma municipal e a outra estadual) e duas em Manaus (as duas estaduais). O sucesso do projeto é percebido facilmente pelos professores.
"Ao longo desses dois anos é nítida a mudança, a convivência entre os alunos mudou demais. E a gente sabe que mudou o comportamento aqui dentro da escola, porque essa não é a realidade deles lá fora", contou uma das professoras.
Os professores, inclusive, também passaram por um treinamento com as psicólogas para poderem aprimorar a relação que tinham com os alunos na escola. "No início, eles (professores) tinham bastante resistência, achavam que estávamos ali para criticar o trabalho que eles estavam fazendo e tal. Depois eles foram aceitando e sentindo o resultado das aulas", explica Taíssa Lukjanenko, outra psicóloga que está no projeto desde o início.
Em geral vistos como vítimas, os professores muitas vezes também são 'agentes da violência' pelo modo como tratam os alunos, conforme pontuou Taíssa. "Aquela violência nunca é só do aluno. Ela vem do meio que ele vive, da forma como o professor o aborda, mas nunca é só dele."
Ela diz que o autoritarismo de alguns professores assim como a adoção de medidas extremas como a expulsão de sala em casos pequenos de indisciplina – um assovio durante a aula, por exemplo – podem contribuir para um ambiente violento na escola, além de prejudicar a relação professor-aluno. "Essa relação é muito importante, o respeito vem daí".
De acordo com os números do grupo Inteligência Emocional na Escola, 86% dos professores que dão aula nas escolas que participam do projeto consideram que a disciplina dos alunos melhorou e 89% acreditam que a relação com os alunos também deu um salto após a aplicação das aulas.
Além do projeto com as psicólogas, a escola em Pirituba também aposta em programas extra-curriculares – banda escolar, mostra cultural, etc. – e na integração com a comunidade – a escola é aberta no fim de semana para atividades da comunidade de Pirituba – para combater a violência.
*Os nomes usados são fictícios

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