A experiência de sala de aula, como professora de Língua Portuguesa do Ensino Médio, tem com freqüência mostrado o quanto é necessário rever alguns procedimentos bem como estabelecer novas metodologias no ensino da língua materna, no sentido de fazer dessa língua um objeto de estudo não só prazeroso como também um instrumento eficiente e eficaz para a leitura, a compreensão e a produção de textos de diferentes gêneros.
Dada a natureza deste evento, nosso olhar estará dirigido diretamente para o texto literário, como indica o próprio título de nossa comunicação.
Se, até meados dos anos 60, o ensino de Língua Portuguesa se orientava por uma perspectiva gramatical que parecia adequada naquele momento, pelo fato de os alunos que freqüentavam a escola já dominarem uma variedade lingüística próxima à de prestígio social, a mudança da população escolar revelou que tal modelo passou a mostrar-se pouco eficiente, dada a falta de domínio em relação à norma padrão pelo novo contingente de alunos que veio freqüentar a escola.
A necessidade de mudar o enfoque do ensino da língua fez com que diferentes abordagens surgissem ao longo dos últimos anos. Do tecnicismo que marcou os anos 70, quando a língua assumiu a condição de simples instrumento de comunicação, visão esta que resultou no ensino de técnicas de redação, exercícios estruturais e treinamento de habilidades de leitura, esforços para mudanças no ensino vêm sendo feitos, manifestados através de políticas educacionais.
Desde os anos 80, o ensino da Língua Portuguesa tem sido o centro da descrição acerca da necessidade de melhorar a educação no país, do ensino fundamental ao universitário. No ensino fundamental, os índices brasileiros de repetência nas séries iniciais estão diretamente ligados à dificuldade que a escola tem de ensinar os alunos a ler e a escrever. No nível universitário, a dificuldade de os alunos, muitas vezes, compreenderem os textos propostos para leitura e de organizarem idéias por escrito tem-se apresentado uma realidade enfrentada, inclusive no curso de Letras.
Vários estudos realizados vêm apontando caminhos para o ensino da Língua Portuguesa, e observa-se haver um consenso entre estudiosos e pesquisadores de que tal ensino deva pautar-se em dois eixos principais: leitura e escrita. Tal posição está presente também nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), que consideram ser o texto a unidade básica do ensino da língua.
Sabemos, porém, não ser essa a realidade que se mostra freqüente na sala de aula. O conteúdo gramatical continua a ocupar o centro das aulas, totalmente desvinculado, por exemplo, da produção escrita. Sobre o trabalho com o texto, funciona este, com freqüência, como mero pretexto para a abordagem de tópicos gramaticais. Cabe ainda considerar que, especialmente no ensino médio, professores distintos, e nem sempre afinados na maneira de ver o ensino da língua, ministram separadamente Gramática, Literatura e Redação. Essa tripartição, especialmente quando ocorre a falta de sintonia metodológica entre os professores, dificulta, e muito, a visão global do aluno, na medida em que isola a gramática da leitura e da produção textual; o texto literário, então, normalmente é tratado como um mecanismo à parte, como se ele não se construísse com base na gramática da língua: pela confirmação das regras ou pelo desvio de valor estilístico.
A partir dessas questões expostas, mostra-se imperiosa a necessidade de fazer com que o aluno perceba a relação estreita que existe entre o conhecimento gramatical, a leitura e a produção escrita. Gramática não como um fim, mas como um meio através do qual o aluno desenvolve sua capacidade de expressão, assumindo uma postura cidadã.Não um emaranhado de regras que aprisiona e tolhe o uso, mas um instrumento vivo e rico, capaz de ser administrado de maneira funcional e criativa.
Nesse quadrante da funcionalidade e da criatividade, entendemos dever estar situado o tratamento a ser dado ao uso dos diferentes sinais de pontuação, o que também não é comum de ser visto no dia-a-dia do trabalho docente.
Aspectos ligados à pontuação vêm despertando o nosso interesse e a nossa curiosidade já há algum tempo. A necessidade de estabelecer um olhar mais cuidadoso para esse tópico mostra-se essencial, dado o importante papel que desempenha na aprendizagem e no desenvolvimento da leitura e da escrita.
No dizer do professor Evanildo Bechara, os sinais de pontuação “constituem hoje peça fundamental da comunicação e se impõem como objeto de estudo e de aprendizado.” (BECHARA: 1999)
Ao levar em conta os livros didáticos adotados com mais freqüência nas escolas de ensino médio, percebemos que a preocupação maior é a memorização de regras sintáticas no emprego dos diferentes sinais: os casos de uso obrigatório e proibido da vírgula e do ponto-e-vírgula, o emprego das aspas, do ponto de exclamação, entre tantos outros enumerados. Embora costumem iniciar o estudo da pontuação, estabelecendo sua relação com a oralidade, fica evidente, na explicitação das regras apresentadas, que a relação entre o oral e o escrito acaba por perder-se, uma vez que critérios sintáticos são assumidos como os únicos cabíveis. A entoação, o ritmo sintático da fala são desconsiderados, o que acaba por dificultar a visão mais ampla que o aluno deveria apresentar no contato que estabelece com o texto escrito, tanto na condição de leitor quanto na de produtor.
Tal procedimento, como bem demonstram as avaliações escolares em diferentes níveis, não tem garantido resultados satisfatórios, considerando-se as últimas pesquisas realizadas, que buscaram determinar a capacidade de compreensão que o aluno demonstra daquilo que lê, além das já costumeiras referências às dificuldades reveladas na escrita, em especial nas respostas dadas às questões de provas discursivas.
Estando, pois, preso ao padrão sintático que o livro didático lhe oferece como referência, dificilmente o professor aborda a finalidade estética do uso da pontuação, tão presente nos textos em que essa finalidade se apresenta como objetivo maior. Os usos “inesperados”, presentes nos textos literários, costumam ser apresentados como “licença poética”, rótulo no qual tudo acaba por vir a caber.
Diante desse fato, é muito comum ouvirmos do aluno questionamentos acerca do emprego de alguma vírgula de algum ponto fora dos lugares a eles determinados pelas gramáticas tradicionais. Daí advêm comentários, tais como: “O Drummond pode usar desse modo; se eu usasse na minha redação, estaria errado!”.
Realmente não pode ser outra, senão essa, a conclusão a que o aluno vai chegar sobre o emprego dos sinais de pontuação: ele, aluno, que foi, todo o tempo, obrigado a decorar regras de uso dos sinais de pontuação; que teve sua redação corrigida sempre que não obedecia a essas regras, num dado momento, vê-se diante de um texto que contraria muito daquilo que lhe foi ensinado, apresentado de maneira tão positiva, tão elogiosa pelo professor. Pergunta-se: o aluno está errado na sua observação? Certamente que não. Para ele, somente aos escritores, seres dotados de um poder supremo, é dado o poder de efetuar as escolhas que melhor lhes aprouver; é dado o direito de obedecer ao padrão gramatical ou de subvertê-lo. O que se vê, nesses casos, são procedimentos diferentes, como que saindo de uma cartola mágica, colocados nas mãos do aluno, que, em nenhum momento anterior, sequer ouvira sobre tais possibilidades de uso.
Não sabe, pois, o aluno que qualquer falante que domina a estrutura e as idiossincrasias de sua língua é capaz de fazer desta o uso que julgar mais adequado à situação na qual se encontra como autor: na produção de um texto científico ou de um texto burocrático, sua postura será uma; em se tratando de um texto literário, será outra a atitude.
Ao lado desse cuidado, vale dizer ainda que, no trabalho com textos em sala, em atividades de leitura, de compreensão e de interpretação, seja com textos literários ou não-literários, o uso que os autores fazem dos sinais gráficos não costuma ocupar lugar de destaque. Poucas são as vezes em que o professor conduz seu trabalho visando relacionar a pontuação à produção do sentido do texto em pauta; destacar o ritmo como efeito do uso dos sinais; chamar a atenção para o uso literário da pontuação. Por conseguinte, dificilmente o aluno, por si só, poderá perceber a relevância dos diferentes usos, e, muito menos, transferir para o texto que produz esses recursos.
Voltando aos livros didáticos, os exercícios apresentados normalmente conduzem o aluno a “pontuar convenientemente!” frases apresentadas, que nenhuma relação de sentido estabelecem entre si. Portanto, ver a pontuação no texto, como fator responsável pela produção de sentido, mostra-se distante, dado que o universo apresentado não ultrapassa o limite da frase. Não sendo o texto um conjunto aleatório de frases, mas um todo organizado no qual as frases se relacionam de maneira coerente nos planos micro e macro textual, a dificuldade que o aluno encontra com a pontuação no texto mostra-se evidente.
Diante desse quadro, cabe, portanto, ao professor apresentar condições para que tais problemas possam ser resolvidos e, a partir daí, fazer com que o aluno possa melhorar se desempenho como leitor e como autor, dando à pontuação o destaque que o assunto efetivamente deve ter.
No texto literário, a questão estética, a expressividade do uso dos sinais gráficos não podem ser relegadas. Segundo Coseriu, se há no discurso literário um desvio proposital da norma, seu efeito, além de agradável ao leitor, é essencial à tessitura da obra. Assim sendo, vírgulas, pontos de exclamação, reticências, colocados fora dos padrões sintáticos habituais, não podem ser desconsiderados, uma vez que são determinantes na produção de sentido do texto.
Entendido como recorte de uma realidade, em um determinado momento histórico, a partir de dadas condições de produção, o texto materializa todos esses fatores condicionantes. No caso específico da pontuação, ao lado do padrão sintático-semântico, não é possível desconsiderar o modelo rítmico-semântico, presente em textos consagrados.
Ao ler, por exemplo, Guimarães Rosa, o aprisionamento do leitor desavisado ao padrão sintático-semântico da pontuação poderia trazer dificuldades na compreensão do texto rosiano, pelo fato de ser o ritmo o foco da construção do referido autor. Se buscarmos textos medievais, certamente poderemos estabelecer paralelos interessantes entre a produção textual da Idade Média e de Guimarães. Será, portanto, possível considerar que a revolução da prosa rosiana se encontra, em certa medida, com o resgate da tradição medieval como elemento de ruptura com a forma de contar, corrente em seu tempo.
No âmbito da literatura portuguesa, o mesmo pode ser referido em relação a José Saramago. A estruturação do texto em blocos compactos muito lembra a organização textual característica da Idade Média.
Ainda sobre ruptura, não se pode deixar de considerar a obra de Machado de Assis. Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, no capítulo LV, “O Velho Diálogo de Adão e Eva”, a pontuação é o texto ; a substituta plena da palavra. O sentido constrói-se a partir da distribuição dos sinais gráficos e da relação que estabelecem entre si, a partir dos personagens diretamente envolvidos (Brás Cubas e Virgília). A extensão das reticências e os demais sinais empregados são, por si sós, capazes de fazer com que o leitor recupere o conteúdo sugerido, com base no conhecimento compartilhado de mundo. O mesmo procedimento ocorre no capítulo CXXXIX, “De como não fui ministro de Estado”, na mesma obra.
Com relação aos poetas românticos, é notável o emprego de travessões, de exclamações, de reticências para enfatizar suas idéias e emoções. Em Castro Alves, por exemplo, a grandiloqüência e o tom hiperbólico, que o caracterizam, revelam-se também através da pontuação. A exacerbação dos sentimentos, tão própria da poesia romântica, encontra-se marcadamente demonstrada com o emprego de sinais combinados, como exclamação e reticências, revelando o esforço de externar a intensidade da emoção vivida.
É importante destacar que o uso dos sinais de pontuação implica também a supressão deles. Assim, não empregar os sinais esperados também pode constituir efeito estilístico, permitindo, inclusive, mais de uma leitura.
Entre os autores que utilizaram tal recurso, cita-se Mário de Andrade. Em “Macunaíma”, a enumeração com nomes de coisas da mesma espécie sem separação por vírgulas constitui um procedimento a destacar.
A supressão de sinais gráficos acha-se presente também em Clarice Lispector, como recurso de representação do fluxo do pensamento do personagem.
Conclui-se, pois, que , no caso específico do texto literário, mostra-se freqüente uma atitude caracteristicamente pessoal do uso da pontuação, na produção de efeitos expressivos. Portanto, do mesmo modo que existe uma língua literária dentro da língua escrita corrente, existe uma pontuação literária dentro do sistema de pontuação corrente. Proceder o autor dentro de um padrão sintático-semântico ou rítmico-semântico, ao pontuar o texto, ou não fazer uso de qualquer sinal gráfico, dependerá da intenção daquele que produz o texto.
A maneira como a pontuação é normalmente trabalhada impede que o aluno perceba tais questões, já que, fora do espaço da memorização de regras, praticamente nada existe que possibilite a reflexão sobre as escolhas dos autores.
Fica, assim o aluno impedido de saborear o texto, de deliciar-se com os recursos utilizados e de ver-se capaz de também produzir textos tão ricos e envolventes, se este for o seu propósito.
Não sejamos nós, professores preocupados com tais questões, os responsáveis por esses impedimentos desastrosos. Não privemos nossos alunos do direito de conhecer, da maneira mais plena possível, a riqueza dos recursos de que é dotada a nossa língua.
Tania Maria Nunes de Lima Camara (UNISUAM)
REFERÊNCIAS
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
CAL, Ernesto Guerra da. Lengua y estilo de Eça de Queiroz. Universidade, 1954.
CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 1985.
LIMA, Carlos Henrique da Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 31ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
LIMA, Mário Pereira de Souza. Gramática expositiva da língua portuguesa. São Paulo: Nacional, 1937.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística. 2ª ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 1997.
NASCENTES, Antenor. O idioma nacional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica. 1960.
RIBEIRO, Ernesto Carneiro. Estudos gramaticais e filológicos. Salvador: Livraria Progresso, vol.3, 1957.
Fonte: www.filologia.org.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário