O Ideb é como uma bússola quebrada. Por já dar alguma direção antes inexistente, é como um oásis ilusório no deserto
Iniciamos em texto anterior uma análise da teoria das inteligências múltiplas, de Howard Gardner, professor da Universidade de Harvard, que, apesar de vir repercutindo positivamente no mundo em vários pontos isolados, ainda carece de um maior estudo, tanto que não é abordada em muitos cursos brasileiros de Psicologia e Pedagogia, e é superficialmente criticada por alguns autores.
Sob certa ótica, esse é um aspecto que destaca a qualidade da teoria de Gardner, pois, dada a deficiência da educação em termos gerais, dada a ainda pouca sensibilidade e a pouca intuição da maioria dos seres humanos, é natural que muitos não percebam o poder que têm as ideias do pesquisador americano.
Um dos principais objetivos de Gardner é criticar a forma pela qual a inteligência das pessoas passou a ser medida, gerando uma porção de consequências a partir do resultado dos testes, como seleção para estudos e trabalhos daqueles com um número mais alto de Quociente de Inteligência (QI), seguindo a ideia de que aquele tipo de teste permitiria saber quem é mais e quem é menos apto para as mais diversas atividades.
Mesmo antes da criação do teste de QI no início do século XX, já tinham havido diferentes tentativas de medir a inteligência das pessoas e de enumerá-las conforme os critérios estabelecidos. Inicialmente, a percepção geral era da inteligência como um talento transmitido hereditariamente, posição, por exemplo, do estatístico inglês Francis Galton.
Antes de Galton, Franz Joseph Gall já havia criado, por volta de 1800, a teoria de que a inteligência estaria ligada à forma da cabeça, propondo uma nova disciplina: a Frenologia. Ele nomeou 37 faculdades ou poderes da mente, sendo o criador de uma primitiva teoria das inteligências múltiplas.
Hoje pode parecer até boba a teoria de Gall, mas, no início do século XIX, ela atraiu muitos adeptos célebres. Como em diversos outros casos, isso nos ensina que o conhecimento está sempre progredindo e que, fatalmente, muito do que se acha boa ciência hoje será considerado ridículo dentro de 10, 50, 100 ou 200 anos, devendo haver maior abertura das pessoas para o novo, para avançar com mais rapidez, ainda que sem imediatismo. O problema é a vaidade, o orgulho e a arrogância que impedem os experts de aceitarem que eles creem hoje em algo que será tido por bobo, inocente ou ridículo.
Bem no início do século XX, Alfred Binet, juntamente com Théodore Simon, desenvolveu os primeiros testes de inteligência, objetivando classificar as crianças, identificar deficiências intelectuais e apontar a série escolar devida de cada uma. Gardner lembra que houve um verdadeiro frenesi em torno dos testes de QI, ainda maior do que aquele gerado pela Frenologia no século XIX.
Escolas, universidades, empresas; todos passaram a testar a inteligência das pessoas, algo que transmitia uma segurança numérica sobre quem era mais e quem era menos capacitado. As pessoas adoram a simplicidade dos números e das classificações, que frequentemente tornam superficiais demais a percepção e confundem todo o pensamento sobre algo muito mais complexo. Muitos consideravam os progressos nos testes de inteligência o grande avanço da Psicologia Cognitiva no século XX, e talvez alguns desavisados assim pensem até hoje.
Gardner já demonstrava, no seu livro publicado em 1983, e reforçou bastante isso nos anos posteriores, que há diversas falhas nos testes de inteligência mais conhecidos. É mais ou menos esse papel que estamos procurando desempenhar, desde outros textos publicados neste blog, em relação ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que causou e ainda vem causando frenesi semelhante àquele gerado pelos testes de QI, sendo similarmente falho.
Aqui chegamos a um dos entroncamentos existentes entre os já estudados Ideb, Pedagogia do Amor e teoria das inteligências múltiplas de Gardner, surgindo algumas dúvidas: 1) Que tipos de inteligência queremos desenvolver nas nossas crianças? 2) Para o que a educação brasileira quer prepará-las? 3) Como o Ideb está ajudando a melhorar a educação do país?
A teoria de Gardner, em conjunto com as abordagens de Goleman e Senge sobre Aprendizagem Socioemocional, ajuda a responder à primeira pergunta. Há diversas inteligências, capacidades ou talentos a serem desenvolvidos, ou diversos aspectos da inteligência, caso assim se prefira, mas a educação prevalecente no Brasil não é capaz de proporcionar isso minimamente.
A resposta à segunda pergunta deve ser: preparar as nossas crianças para a vida. Isto requer o desenvolvimento dos mais distintos aspectos da inteligência, das múltiplas inteligências apontadas por Gardner, sem o prejuízo de existirem outras, como ele mesmo indica.
O que Gardner fez foi utilizar anos de pesquisa em Harvard para selecionar alguns tipos de inteligência principais, acerca dos quais ele tinha alguma segurança, por notá-los nos mais diferentes estudos, que se debruçaram sobre indivíduos com as mais distintas características, de gênios a deficientes.
Isso não significa que as próprias inteligências destacadas por Gardner e apresentadas no último texto não possam ser subdivididas em mais tipos e que outras características humanas não possam ser elevadas ao grau de um tipo de inteligência. Tudo é relativo e uma classificação em tipos de algo é sempre maleável, dependendo dos pesos que se dê, das perspectivas que se utilize.
Mais especificamente sobre o Ideb, respondendo à terceira pergunta realizada acima, é evidente que ele apenas analisa - e mal, sujeito a distorções e manipulações - dois tipos de inteligência, que são as mais conhecidas, por estarem ligadas à ideia limitada e já ultrapassada de inteligência, calcadas apenas na linguística e na lógico-matemática.
Para um país que, em pleno século XXI, não tinha uma avaliação nacional da evolução da educação de mínima abrangência e capacidade de mostrar algo relevante, o Ideb somente podia causar o frenesi visto no país. No entanto, da parte da administração pública, tal efeito se deve infelizmente muito mais ao uso político do índice do que a uma verdadeira preocupação com a qualidade da educação.
O Ideb é como uma bússola quebrada. Quando não se sabia nem para onde ir e se descobre um instrumento que aponte para um caminho, é como encontrar um oásis no deserto. O frenesi é compreensível, mas não é positivo.
Ao se mostrar que o instrumento está apontando para o caminho errado, é também compreensível que as pessoas relutem bastante em aceitar esse fato, pois é como retirar o doce da criança ou como provar que aquele oásis no deserto era mera ilusão da mente. Como é natural do ser humano neste estágio de desenvolvimento, mas não é positivo, muitos preferem o comodismo da ilusão do que as novas exigências da realidade.
Se a Aprendizagem Socioemocional é, como visto, tão ou mais importante do que a aprendizagem acadêmica clássica, focada apenas nas inteligências linguística e lógico-matemática, um teste que não meça adequadamente as inteligências interpessoal e intrapessoal, é paupérrimo. Ele pode apontar que crianças estão muito bem educadas, quando, em verdade, estão apenas preparadas em uma pequena parte dos aspectos da inteligência por conta da necessidade de obter uma boa nota num teste determinado.
Como se sabe, em muitos municípios os melhores alunos estão sendo selecionados para fazer o Ideb, enquanto os mais fracos recebem atestados. Aqueles que vão fazê-lo são especificamente preparados, sobretudo quando se está próximo da prova, sem falar em casos mais graves informalmente comentados por quem é do meio.
Deste modo, os resultados no Ideb servem para pouca coisa; servem mais para iludir a população acerca de uma suposta capacidade administrativa dos governantes do que para direcionar uma melhoria real e significativa de algo tão fundamental e atrasado como a educação brasileira. O curioso é que a maioria dos supostos grandes especialistas da educação assistem a tudo atônitos e aceitam o Ideb com o mesmo frenesi que se aceitava e ainda se aceita os testes de QI.
No texto seguinte, iremos começar a desenhar os contornos para novos testes de avaliação da qualidade da educação brasileira, que sejam mais completos, mais complexos no sentido de entrelaçar os diferentes tipos de inteligência e cujos resultados indiquem melhor onde cada escola precisa avançar.
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