Olá, leitor!
Escrito no período do auge do romantismo brasileiro, o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, retrata a vida da sociedade carioca, ou seja, do Rio de janeiro do século XIX, entre os anos de 1852 e 1853, e desenvolve pela primeira vez na nossa literatura a figura do malandro, além de ser uma das principais obras a caracterizar de forma eficiente a vida da sociedade carioca da época de uma forma verdadeira e sincera.
A história de Leonardo e a sua transformação em um herói romântico, foi publicado inicialmente num folhetim semanalmente, sendo assim, o enredo dessa obra tinha que ser apresentado de uma forma mais rápida e para prender a atenção dos leitores, por isso, a narrativa consiste em capítulos curtos que relatam diversos fatos, sendo interligados em sua maioria, mas, em alguns casos, com passagens que destoam um pouco do enredo principal.
Um bom exemplo disso é que, em sua obra, o autor não apenas apresentou aspectos da burguesia carioca, como era de costume, mas, também, apresentou ao leitor a vida das pessoas de classe mais baixa do Rio de Janeiro do século XIX.
“Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada época veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam-cadeiras de campanha-um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam; e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia. Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.”
Resumo da obra
Filho de um beliscão e de uma pisadela “essa é uma referência ao modo como seus país se conheceram no navio que veio de Portugal ao Brasil trazendo-os”.
Leonardo é uma criança intratável, parece prever as dificuldades que irá enfrentar na vida. Ele é abandonado pela mãe, que foge do Brasil para Portugal com um capitão de navio, é abandonado também pelo pai.
Encontra em seu padrinho um protetor, ele é dono de uma barbearia e tem guardada uma boa quantia de dinheiro.
Enquanto Leonardo apronta todas na vizinhança, seu pai, Leonardo Pataca se envolve com uma mulher, cigana, mas o abandona rápido. Ele continua apaixonado e recorre a feitiçaria para trazê-la de volta, prática proibida na época.
Mas, no momento da feitiçaria o major Vidigal invadiu junto com seus homens a casa do feiticeiro, açoitam os praticantes e leva Leonardo Pataca para a prisão.
Pataca pede ajuda á Comadre, que por sua vez pede ajuda a um Tenente-Coronel, que tinha uma dívida com a família de Leonardo Pataca, e logo ele é solto.
O padrinho de Leonardo havia aprendido o ofício de barbeiro com o homem que o criou. Foi à áfrica como médico em um navio negreiro, no período de volta ao Brasil, o capitão em seu leito de morte confiou a ele um baú de dinheiro para que fosse entregue a sua filha, mas, ele ficou com o dinheiro.
Após o acontecido ele aparenta ter se tornado um homem de bem, cria Leonardo como se fosse seu próprio filho, sonhava torná-lo padre. Porém, o menino causa transtornos por onde passa, após levar uma enorme bronca do padre da cidade e ele jura vingança.
O padre tinha uma figura social de santo, mas a realidade era bem diferente, ele havia roubado a cigana de Leonardo Pataca. O padre passava uma grande parte do seu tempo com a cigana, então, o menino Leonardo resolve armar uma emboscada para desmascarar o padre.
Ele vai até a casa da cigana para informar a ela o horário de uma festa, mas ele mente o horário para que o padre chegue atrasado a tal festa. Quando chega a igreja Leonardo é repreendido pelo padre, que o pergunta qual o horário certo do sermão.
Leonardo responde que havia informado o horário correto e que a cigana, estava de prova, pois, havia ouvido tudo. Sem saber o que fazer perante o choque das pessoas, ele dispensa o menino.
Leonardo Pataca, por sua vez tenta reconquistar a cigana que havia perdido para o padre, mas ela não lhe dá chance de aproximação. Pataca, então, contrata um amigo para causar uma grande confusão em uma festa que a cigana iria promover em sua residência.
Em meio à confusão aparece Vidigal, que havia sido avisado por Pataca, a intenção era flagrar o padre e prendê-lo e deu certo, pois, o padre foi pego só de cueca, meia, sapato e com o gorro em sua cabeça. Com o acontecido, Pataca consegue ficar mais um tempo com a cigana.
O compadre começou a frequentar a casa de Dona Maria, uma mulher rica e que tinha gosto pelo Direito, sempre acompanhado pelo seu afilhado Leonardo.
Com o passar dos tempos o menino foi sossegando, então, chega a idade dos amores. Uma menina tida como feia, Luisinha, foi morar com sua tia, era filha do falecido irmão de Dona Maria.
No dia do espírito santo, era de costume que todos fossem ver a queima de fogos e assim, fora, a menina se divertiu muito, abraçou Leonardo e os dois voltaram para casa de mãos dadas. Porém, após o acontecido, Luisinha voltou a ficar tímida.
Certo dia entra em cena um homem mais velho, José Manuel, interessado em Luisinha por conta de sua herança deixada pelo pai e mais a que iria receber de Dona Maria, já que era sua única herdeira.
O Compadre logo percebe o interesse de José Manuel, se junta à Comadre para afastar o interesseiro. Leonardo por outro lado tenta conquistar Luisinha, mas ele acaba afastando a moça, mas é claro o fato que Luisinha o corresponde aos sentimentos, por conta de mentiras contadas pela comadre e que são descobertas rapidamente, Dona Maria, ao invés de expulsar José se afasta da comadre que agora está desacreditada.
Enquanto isso, Pataca é novamente traído pela cigana e se junta com a filha da comadre e juntos têm um filho. Pouco depois a Comadre morre, então, Leonardo decide ir morar com o pai.
Mas, ele e sua madrasta não conseguem se entender. Leonardo foge de casa. Afastado de todos que conhecia, ele conhece um grupo que estava fazendo piquenique e dentre eles reconhece um amigo de infância.
Leonardo passa a morar na rua da vala, onde vivem também duas quarentonas viúvas e seus seis filhos, uma delas tinha três moças e outra três rapazes.
Vidinha era sem dúvidas a mais bonita, tanto que era disputada por dois primos. Porém, vidinha acaba se interessando por Leonardo e acabam passando o dia dos namorados juntos em casa, isso desperta os ciúmes dos outros rapazes.
Eles então, decidem falar para Vidigal que Leonardo está morando como intruso na casa delas e ainda tirando proveito delas. Leonardo acaba preso, mas consegue fugir.
A Comadre arruma bom emprego para Leonardo, mas ele acaba se envolvendo com a esposa do patrão e logo é demitido. Vidinha vai à casa de Toma Largura, ex-patrão de Leonardo, para brigar com ele e com sua esposa.
Vidigal consegue prender Leonardo, Toma Largura fica encantado com Vidinha e começa a cortejá-la de todas as formas. A moça encara a ausência de Leonardo como consequência dos últimos acontecimentos, então, resolve ceder às investidas de Toma Largura.
Leonardo começa a servir ao exército, mas só porque foi obrigado pela polícia. Após um tempo ele é colocado por Vidigal no batalhão de granadeiros para combater os malandros do rio.
Porém, ao contrário do que pensavam, Leonardo continuava a aprontar das suas dentro do batalhão de polícia. Vidigal pretende prender um homem que faz imitações suas para animar festas, Leonardo acha isso muito engraçado e acaba se divertindo muito e avisa ao imitador sobre as intenções de Vidigal.
Quando o Major descobre que Leonardo o traiu, prende o rapaz sob juramento de muitas chibatadas.
A Comadre acaba sabendo do acontecido e vai pedir ajuda a Dona Maria e a antiga amante de Vidigal, Regalada. Elas vão a casa do major, que as recebe fardado apenas da cintura pra cima e vestido como civil da cintura pra baixo.
Vidigal não resiste ao pedido das mulheres e ainda promete promover ele a sargento do exército.
Enquanto isso, Luisinha estava casada com Manuel que a tratava muito mal, sua única preocupação era o dinheiro da moça. Dona Maria, por sua vez, prepara uma ação judicial contra ele, mas antes disso acontecer o homem acaba morrendo de um ataque apoplético, algo parecido com um derrame.
Após o enterro de José Manuel, preparam tudo para um novo casamento, Luisinha agora mulher feita e bonita irá se casar com o também bonito e muito elegante sargento do exército.
Algum tempo depois morre Dona Maria e Leonardo Pataca, portanto, eles recebem mais duas heranças que juntaram a que já tinham.
“O major Vidigal fora às nuvens com o caso: nunca um só garoto, a quem uma vez tivesse posto a mão, lhe havia podido escapar; e entretanto aquele lhe viera pôr sal na moleira; ofendê-lo em sua vaidade de bom comandante de polícia, e degradá-lo diante dos granadeiros. Quem pregava ao major Vidigal um logro, fosse qual fosse a sua natureza, ficava-lhe sob a proteção, e tinha-o consigo em todas as ocasiões. Se o Leonardo não tivesse fugido, e arranjasse depois a soltura por qualquer meio, o Vidigal era até capaz, por fim de contas, de ser seu amigo; mas tendo-o deixado mal, tinha-o por seu inimigo irreconciliável enquanto não lhe desse desforra completa.”
Estrutura da obra
A obra é estruturada em 120 páginas, com 48 capítulos curtos, que narram a história da personagem principal, Leonardo, desde a sua infância até a vida adulta, passando por diversos trechos da vida de uma pessoa: das meninices da infância às primeiras aventuras amorosas, do trabalho ao casamento, falando sobre a passagem do menino para o jovem e do jovem para o homem, entre outras coisas.
Integralmente, a obra foi lançada em 1954, num livro que reuniu todos os textos do autor.
Contexto histórico
A obra retrata o momento de pós-independência da nação brasileira, onde iniciou-se o processo de criação de uma identidade nacional, em diversos aspectos da arte, bem como, como se percebe neste livro, na literatura.
Tempo e espaço
O tempo da obra é datado pelo ano de 1810, período da chegada da corte portuguesa ao Brasil, sendo assim, os fatos narrados retratam bem a sociedade brasileira, principalmente a carioca, da época.
Em relação ao espaço da narrativa, pode-se destacar, com toda a certeza, a cidade do Rio de Janeiro, contudo, a história retrata o cenário urbano brasileiro desse período de uma forma mais abrangente.
Foco narrativo, narrador e linguagem
A narrativa é feita em terceira pessoa, ou seja, narrador heterodiegético, sendo o narrador um ser observador e onisciente que nos revela os acontecimentos.
Contudo, o grande destaque desse livro se dá na linguagem, apresentada de uma forma mais fluída e coloquial, devido ao tom jornalístico dessa obra. Sendo assim, tudo é contado de uma forma ágil e dinâmica, fazendo com que seja muito semelhante a uma crônica.
Há diálogo direto com o leitor em algumas passagens, bastante nuances de metalinguagem e muito humor, sempre colocando em destaque situações da vida cotidiana da sociedade da época.
Principais personagens da obra
Os principais personagens dessa obra, são:
Leonardo
É o protagonista e responsável pela narrativa. O sargento de milícias a qual se refere o título do livro. Contudo, esse personagem obtém esse título apenas nas últimas páginas da obra.
Representa a primeira figura típica da literatura conhecida como malandro, uma espécie de anti-herói que acaba, enfim, tornando-se um herói romântico de fato.
Leonardo Pataca
Um meirinho (oficial de justiça) pai de Leonardo, ele tinha sido vendedor de roupas em Lisboa e, que durante sua viagem ao Brasil conhece Maria das Hortaliças e isso resulta no nascimento de Leonardo.
Maria das Hortaliças
Uma camponesa, mãe de Leonardo, uma mulher muito namoradeira que abandona o filho para ficar com outro homem.
O padrinho ou compadre
É o dono de uma barbearia e toma a guarda de Leonardo após o menino ser abandonado pelos pais ainda criança. Torna-se então um pai para Leonardo.
A Madrinha ou comadre
É uma mulher gorda e apresentada como ingênua, uma frequentadora assídua das missas e festas religiosas.
Major Vidigal
É um homem não muito gordo, alto e com ares de moleirão. Mesmo com esse aspecto era quem impunha a lei de forma mais enérgica e respeitada na região.
Dona Maria
É uma senhora que não era bonita, mas tinha aspecto bem cuidado, uma mulher rica e devotada aos pobres, ela tinha vícios nas disputas judiciais.
Luisinha
É uma moça mostrada inicialmente como uma pessoa sem graça, sobrinha de dona Maria, mas torna-se uma mulher bonita e forte.
Relevância da obra
Memórias de um Sargento de Milícias destaca-se de outros livros da fase do romantismo do Brasil justamente por não se enquadrar nos estilos da maioria dos romances de época.
Essa obra pode ser enquadrada no gênero romântico, devido a diversos elementos presentes na narrativa que são comumente utilizados pelos romances românticos.
Contudo, o livro destaca-se pelo tom de comicidade e por travessuras que o autor faz com a sua obra, bem como com o personagem.
Isso faz com que a obra também possa ser caracterizada como um romance picaresco, que nada mais é que uma tradição antiga ligada a marginalidade onde os romances eram permeados por humor e a presença de um anti-herói engraçado e sem escrúpulos que fazia de tudo para tirar vantagens das situações.
Além disso, também se pode caracterizar esse livro como uma obra de crônicas de costumes, pois retrata fielmente a sociedade da época em seu cotidiano, bem como o tom jornalístico na composição da história.
Aspectos do pré-realismo também podem ser encontrados na obra, o que dificulta ainda mais o processo de classificação desse livro em determinado gênero literário, como também, em determinada corrente literária.
Por esses e outros motivos, Memórias de um Sargento de Milícias é uma obra única e singular na literatura brasileira.
“[…] A comadre, ao vê-lo assim, apesar da aflição em que se achava, mal pôde conter uma risada que lhe veio aos lábios. Os cumprimentos da recepção passaram sem novidade. Na atropelação em que entrara o major a comadre enxergou logo um bom agouro para o resultado do seu negócio. Acrescia ainda em seu favor que o major guardava na sua velhice doces recordações da mocidade, e apenas se via cercado por mulheres, se não era um lugar público e em circunstâncias em que a disciplina pudesse ficar lesada, tornava-se um babão, como só se poderia encontrar segundo no velho Leonardo. Se estas lhe davam então no fraco, se lhe faziam um elogio, se lhe faziam uma carícia por mais estupidamente fingida que fosse, arrancavam dele tudo quanto queriam; ele próprio espontaneamente se oferecia para o que podiam desejar, e ainda em cima ficava muito obrigado. Contudo, posto que a comadre soubesse já desta circunstância com antecipação, ou a pressentisse pelas aparências, a gravidade do negócio de que se tratava era tal, que nem isso bastou para tranquilizá-la. Dispôs-se para o ataque, ajudada por suas companheiras, que, apesar de mais estranhas à sorte do Leonardo, nem por isso se ligavam menos à sua causa. Houve um momento de perplexidade para decidir-se quem seria o orador da comissão. O major percebeu isto, e teve um lampejo de orgulho por ver assim três mulheres confundidas e atrapalhadas diante de sua alta pessoa; fez um movimento como para animá-las, arrastando sem querer os tamancos.”
Até logo!
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